31/05/2011

Manifesto

O livro do MEC ensina a falar errado? NÃO!
      Nos últimos dias, o livro “Por uma Vida Melhor”, da Coleção Viver, Aprender – adotado pelo Ministério da Educação (MEC) e distribuído pelo Programa Nacional do Livro Didático para a Educação de Jovens e Adultos (PNLD-EJA) – tem alimentado acesa polêmica na mídia brasileira. O alvo de críticas é um trecho do capítulo “Escrever é diferente de falar” (http://migre.me/4Co39) que afirma “Você pode estar se perguntando: ‘Mas eu posso falar ‘os livro’?’ Claro que pode. Mas fique atento, porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico (…) Muita gente diz o que se deve e o que não se deve falar e escrever, tomando as regras estabelecidas para a norma culta como padrão de correção de todas as formas linguísticas.”
      Frente às interpretações que consideramos equivocadas a respeito de “Por uma Vida Melhor”, muitas vezes embasadas pela descontextualização de passagens e de afirmações do livro, defendemos que o capítulo “Escrever é diferente de falar” cumpre o papel da escola: ensinar a norma culta, tarefa que implica promover uma reflexão sobre a diferença entre a fala e a escrita. Os exemplos da variedade popular, como "Nós pega o peixe" e "Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado", são usados para refletir sobre variedades que o aluno já conhece e sobre diferentes contextos em que são usados para, com base nessa reflexão, ensinar outras variedades, preferidas em outros contextos.
      Para desenvolver a consciência linguística dos alunos, o capítulo mostra como:
  • não há um único jeito de falar e escrever;
  • existem variações linguísticas regionais e sociais;
  • a língua é instrumento de poder e a norma culta é a variedade prestigiada;
  • não existe certo e errado e, sim, mais ou menos adequado a diferentes situações de comunicação;
  • o uso de diferentes variedades causa diferentes efeitos de sentido dependendo do nosso interlocutor, e pode implicar exclusão.
      Entendendo que o objetivo da escola é inserir o aluno no mundo da escrita e do uso da norma culta, por meio do ensino da leitura e da produção de textos, não há dúvida de que o livro permite alcançar essa meta: é um instrumento para a reflexão e para o ensino da variedade culta, promovendo a oportunidade de o aluno aprender a escolher como se expressar nos diferentes campos de atuação em sua vida. O referido capítulo mostra a riqueza e a variedade de nossa língua e assume que todos nós sabemos falar português e que precisamos aprender a variedade de prestígio para que essa também possa ser uma das nossas escolhas linguísticas.
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PARA COMPREENDER A FUNÇÃO SOCIAL DA ESCOLA 
* Desde o momento em que começamos a nos socializar, levamos em conta com quem falamos e escolhemos o que dizer e como. Basta lembrar de como nos dirigimos a pai, mãe, amigo, professora ou outra pessoa para pedir atenção, um livro emprestado ou para pedir desculpas. São outros jeitos, outras palavras e outras formas de falar e de escrever, pois a experiência nos mostra que, com cada um e em cada momento, nos relacionamos de maneiras diferentes (e isso inclui diferentes formas de falar e escrever).


* Ao longo da nossa vida, vamos ampliando nossos círculos sociais e aprendendo que há novas situações comunicativas, e que cada uma delas demanda diferentes estratégias e formas de falar e escrever. Nem por isso vamos esquecer ou deixar de usar o que continua bem na relação com o pai, a mãe e o amigo quando queremos atenção ou um livro emprestado.


* Quanto mais queremos participar de diferentes campos de atuação na sociedade de maneira confiante, mais formas de falar e de escrever precisamos aprender. E para ser um cidadão atuante na sociedade é preciso aprender diferentes regras de participação social (e isso inclui novas formas de falar e de escrever).

* Não é novidade que classe social, cor, idade, educação entram em jogo nas lutas de poder. As variedades linguísticas que falamos e escrevemos também importam nesses jogos. Isso quer dizer que uma pessoa exclui outras pessoas porque elas não usam determinadas formas de falar e de escrever. Isso acontece em qualquer lugar e em qualquer momento: basta alguém querer excluir. E sabemos disso! E a escola também sabe disso!
Como lidar com a diversidade?
Muitos preconceitos hoje criminalizados (preconceito racial, preconceito social) continuam sendo praticados pela exigência de determinadas formas de falar e de escrever. Uma sociedade democrática compreende e aceita a pluralidade e assume o compromisso de discutir e refletir sobre a diversidade e de dar acesso a todos à variedade prestigiada: é o que a escola está fazendo!


* A escola sempre se responsabilizou e continua se responsabilizando por ensinar e praticar, com as crianças, os jovens e os adultos, os repertórios linguísticos que elas não conhecem. Com a chegada de todas as parcelas da população à Educação Básica nas últimas décadas, essa tarefa ficou mais complexa, mas a nação e a escola estão trabalhando para enfrentar o desafio de enxergar a nossa cara linguística e disseminar o acesso à língua da cidadania, que é o português escrito.

* Admitir que existem diferentes variedades linguísticas (na fala e na escrita), discutir e refletir sobre elas e sobre como se relacionam com a nossa vida – tudo isso é fundamental para uma educação qualificada.


Como surgem as variedades linguísticas?
As escolhas linguísticas de um falante não estão subjugadas a um “poder regulador superior”, mas são pautadas pela situação de comunicação: quem fala com quem e com que objetivos. Somos parte de um grupo social, construímos as variedades linguísticas que existem e as mantemos ou modificamos em conjunto, adequando-as aos vários contextos sociais dos quais participamos – isso é um processo social e cultural. As variedades linguísticas não são toscas, são frutos da socialização humana, são fenômenos resultantes das trocas das pessoas nos seus grupos e entre os grupos. Todos nós agimos cotidianamente usando várias formas de falar e autorizando, com o nosso interlocutor, a existência de diferentes variedades. Antes de exercermos o nosso olhar crítico sobre elas – de bani-las, admirá-las ou prestigiá-las –, essas variedades vão se constituindo nas práticas das comunidades. A variação linguística é um fenômeno comum a todas as línguas, não só ao português brasileiro.
* Para continuar enfrentando os desafios de responder às demandas de educação de qualidade para todos, faz sentido que a escola crie oportunidades para COMPREENDER todas as formas de exclusão (inclusive a linguística) e ofereça a possibilidade de aprendizagem de repertórios valorizados na sociedade para que o cidadão possa ter MAIS ESCOLHAS.

* A escola também entende e ASSUME que hoje reúne jovens de todas as classes sociais, de todas as cores, de todas as idades, que falam e escrevem todas as variedades linguísticas. É justamente essa pluralidade e essa diversidade o que está em pauta na educação escolar contemporânea. E isso merece ser também assumido, aceito e discutido por toda a sociedade. Não há “perigo” em discutir a pluralidade e a diversidade para quem está comprometido em formar cidadãos. 

* Todos sabemos que é preciso usar diferentes formas de falar e de escrever desde que começamos a nossa socialização – e não precisamos nos sentir ameaçados ao admitir que essas diferenças existem e ao discutir a necessidade de aprender novas formas.




* Discutir sobre diferentes variedades linguísticas na escola aumenta nossa compreensão sobre como as coisas acontecem na sociedade e como podemos nos posicionar perante elas.

* Pessoas socializadas nos mais diversos rincões e condições sociais entendem que a ESCOLHA do que dizer e como dizer é feita a todo o momento e está relacionada com quem falamos, sobre o quê, para quê e que parcerias estamos (ou não) buscando.
Por que estudar Português na escola?
Se os alunos já chegam na escola conhecendo alguma variedade da língua portuguesa, podendo circular por meio de seu uso em determinados espaços, por que precisam estudar Português na escola? Porque a escola é responsável por ampliar as possibilidades de participação dos alunos na sociedade. Para isso, é dever da escola proporcionar aos alunos o acesso às práticas de leitura e escrita exigidas para o efetivo exercício da cidadania. E isso inclui o acesso e a prática da variedade culta. A escola está preocupada em ensinar o aluno a tomar decisões sobre quais variedades e formas escolher para se expressar, e a entender o que essas escolhas podem acarretar.





Perguntas que a escola contemporânea faz para discutir o preconceito linguístico e para assumir o seu papel de ampliar a prática de diferentes formas de falar e de escrever:

·Há diferentes formas linguísticas para convidar alguém para sair, pedir dinheiro emprestado, comentar sobre um filme, elogiar uma pessoa, etc.? Isso muda se você levar em conta quem está falando com quem, em que momento, em que lugar, em que condições?
·Como você usa as diferentes variedades linguísticas que você conhece em seu benefício?
·Quem são os seus modelos de uso da língua nas diferentes situações de fala e de escrita?
·Você já esteve em uma situação em que se sentiu “sem as palavras necessárias” ou que “seria bom falar ou escrever de outro jeito” para conseguir alguma coisa? Que situação foi essa?
·Em que cenários sociais o cidadão precisa participar? Quais são as variedades linguísticas necessárias para participar desses cenários?
·“Antes de falar comigo, vai aprender a falar!” “Para me criticar, primeiro aprende a escrever!” Você já ouviu isso? Em que situação? Quem estava falando? Com quem? Para que estavam usando esse argumento?
·O que estava sendo considerado “errado” nessas situações? Quem usa a noção de “falar errado” ou de “escrever errado” e para quê?
·Em que situações é importante usar variedades prestigiadas? Quando isso pode fazer diferença? Por quê?



Círculo Educação Linguística

Porto Alegre, 23 de maio de 2011.