30/09/2009

bolacha água e sal

Escultura de Terry Border

Observando um cracker, com seus furos tradicionais, dando espaço ao doce de leite que se erige levemente até a superfície, compreendo que estou completamente só. Só eu e ela, cumprindo seu papel de ser bolacha água e sal, preenchendo a lacuna do meu dia, de todos os dias, de todos os finais de tarde. A sensação de comer um cracker deveria existir pra todo mundo, mesmo quando não se degusta: a saliva se mistura nos furos cheios de doce de leite, os dentes esfarelam a superfície da bolacha e a partem em três pedaços, sendo dois pequenos e um maior, meio triangular.
Não ter a quem dizer a sensação de comer uma bolacha faz a gente entender que estar só é uma questão de conquista particular. Ninguém fica só do nada: sempre tem umas cervejas negadas, um e outro encontro desperdiçado, uma melhoramiga que encontra outra melhoramiga e a gente fica assim, meio gordo, meio amigo de todo mundo. O amor presente de repente fica distante. Companhia e família não são sinônimos; a não ser nas festas em que todos se unem numa unidade indestrutível – até um tio provavelmente chamado Ovelha ou Paulinho falar bobagem.
É a velha cream cracker no fundo do armário que me faz companhia agora, que podia se chamar osmus ou lafus, de tão mole que está por ter ficado dias num pacote transparenteaberto.
Como pelo menos quatro delas e penso em tudo o que não tenho. Mas penso principalmente no que tenho: tenho mais um dia de lembranças, mais um dia de filosofia, entendendo todos os motivos que fazem o tio ser O tio. São sempre dois - a bolacha e os furos, a bolacha e a bolacha, eu e os furos, farelos e eu e aquele recheio, que eu mesmo invento, esgotando a possibilidade do buraco ficar vazio.

4 comentários:

  1. òtima crônica. funde sensibilidade e leveza, sedimentadas por um estilo tão legas. Longa vida ao blog. Te amo.

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  2. Muitooo bom!
    Crônica perfect!
    Quem diria que Cream Crackers
    fazem tantas cousas...
    Eu não tinha pensado nisso..
    Vou comprar um pacotão!

    Abração moça!
    =)
    BRUNO SCORTEGAGNA

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  3. que pena, então, que não há postagem nova. abraço.

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